Niède Guidon, guardiã e farol

Por: Assessoria

Teresina - PI

Niède Guidon/Imagem: FUMDHAM
Niède Guidon/Imagem: FUMDHAM

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Arnaldo Boson Paes

Desembargador do TRT/PI,

doutor em Direito e professor universitário.

Desde a década de 1970, venho acompanhando com admiração a trajetória da arqueóloga Niède Guidon. Nascido na região, testemunhei seu trabalho florescer e se expandir. Em 1977, fui residir em São Raimundo Nonato, para estudar. Naquele tempo, as pesquisas de Niède começavam a ressoar no cenário internacional. No entanto, localmente, sua atuação enfrentava grandes obstáculos e fortes resistências, especialmente por parte dos líderes políticos, dos comerciantes e moradores da região.

Hoje, 4 de junho de 2025, recebemos a triste notícia do falecimento da destemida arqueóloga, aos 92 anos, em São Raimundo Nonato, no Piauí. Sua partida representa uma perda irreparável para a arqueologia, tanto no Brasil quanto em âmbito global, especialmente para o estado do Piauí, que ela ajudou a projetar em níveis de reconhecimento acadêmico, ambiental e cultural.

Niède Guidon chegou a São Raimundo Nonato, coração da Caatinga piauiense, em 1970, como pesquisadora associada ao Museu do Ipiranga, em São Paulo. Desde então, suas descobertas impactaram de forma significativa a comunidade científica nacional e conferiram ao Piauí uma posição de destaque no cenário internacional.

Suas investigações corroboraram a hipótese de que a região da Serra da Capivara abriga vestígios do ser humano mais antigo das Américas, cuja presença é estimada em pelo menos 50 mil anos. Esse trabalho foi crucial para a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara em 1979, que se estende por 129.140 hectares e possui um perímetro de 214 km.

Em 1986, os membros do programa binacional de pesquisas (França-Brasil) na Serra da Capivara criaram a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), uma entidade privada de natureza científica e sem fins lucrativos. Entre seus objetivos, destaca-se a preservação das coleções resultantes das pesquisas na região e a divulgação dos achados obtidos.

O reconhecimento da importância do trabalho de Niède Guidon e do local que ela desvendou foi consolidado em 1991, quando o Parque Nacional da Serra da Capivara foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Em 1995, a Escola de Samba Beija-Flor prestou homenagem à Serra da Capivara durante o carnaval do Rio de Janeiro, ressaltando sua relevância cultural.

Atualmente, a Serra da Capivara é o projeto arqueológico mais significativo das Américas. A contribuição de Niède Guidon e sua equipe para a compreensão do berço do homem americano, situado no Piauí, é verdadeiramente inestimável.

Em 1998, tive a honra de participar da cerimônia de inauguração do Museu do Homem Americano, a convite do deputado federal Paes Landim, um ardoroso defensor da obra de Niède. Anos depois, em 2018, foi inaugurado no parque o Museu da Natureza, um dos mais relevantes do mundo em termos de conservação ambiental e educação sobre a história natural.

Visitei os museus e o parque em várias ocasiões. A cada visita, percebo que a vida e a obra de Niède Guidon são paradigmas de dedicação à ciência e à preservação do patrimônio arqueológico, ambiental e cultural.  Seu trabalho projetou o Piauí em escala global, tornando o estado referência mundial em pesquisas arqueológicas.

O adeus à arqueóloga não encerra sua obra; ao contrário, a eterniza. Cada pintura rupestre que ela revelou, cada sítio que protegeu, são testemunhos vivos de sua extraordinária contribuição, revelando um patrimônio piauiense que o Brasil e o mundo acolhem e reverenciam. Niède Guidon permanecerá entre nós, como guardiã e farol.

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